O vínculo ao Fundador

5 de julho de 2020 às 10:45 AM

Entrevista completa com Ir. M. Elizabet Parodi

 

Ir. M. Nilza P. da Silva/Karen Bueno – A vinculação ao Pai e Fundador, Pe. José Kentenich, é algo essencial na espiritualidade de Schoenstatt, pois reflete um dos fundamentos de sua pedagogia, o organismo de vinculações. O tema instigante fez com que Ir. M. Elizabet Parodi, do Instituto Secular das Irmãs de Maria de Schoenstatt, pesquisasse justamente a relação entre a figura dos fundadores e a fidelidade de sua organização ao carisma fundacional, em que medida ambos se relaciona

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Ir. M. Elizabet é argentina e fez o doutorado em Teologia na Alemanha, na Faculdade de Teologia dos Padres Pallottinos, em Vallendar. A tese intitulada “O vínculo com o Fundador – Por quê? Para que?”, da disciplina de História da Igreja, analisa as diversas comunidades, congregações e associações religiosas e sua relação pessoal com os fundadores.

 

Por anos Ir. M. Elizabet trabalhou em Roma, na Congregação pela Causa dos Santos: “O trabalho neste dicastério é especificamente analisar e preparar um relatório para ratificar o Santo Padre sobre a santidade do candidato, do Servo de Deus que se apresenta, ou sobre o mártir, onde se analisa a morte por amor à fé, também os milagres que realiza um beato ou um santo”, explica. Trabalhava justamente na secretaria onde correm os processos de beatificação do Diác. João Luiz Pozzobon, da Ir. M. Emílie Engel, de José Engling e outros heróis schoenstattianos.

 

Ir. M. Elizabet Parodi compartilha um pouco de sua análise sobre a vinculação ao fundador, revelando uma visão teológica de algo que os schoenstattianos reconhecem em sua própria vida. Acompanhe a entrevista:

 

Nós estamos iniciando o segundo século da nossa história de Schoenstatt. Os tempos e as circunstâncias mudaram muito desde 1914. Faz sentido, ainda hoje, o vínculo ao nosso Fundador? Por quê?

 

Sim, faz sentido. Justamente porque as circunstâncias mudaram – e esse não é o único porquê. Ele é circunstancial, poderia se falar também de um porquê fundamental. Basicamente, porque quando Deus presenteia um carisma como um dom para a Igreja, como o carisma de Schoenstatt, o presenteia por meio de uma pessoa concreta, que é a pessoa do fundador. É assim que todos os que se sentem chamados a esse carisma, a participar desse Movimento, são partícipes do carisma do Fundador. Ou seja, para nós, sermos schoenstattianos é de alguma maneira continuar o carisma do Fundador. Esse é justamente o sentido para o qual Deus presenteia um carisma a um fundador, ele não presenteia apenas à sua pessoa, que está limitada ao tempo no qual vive. O carisma é um presente à Igreja que se faz vivo por meio de seus filhos.

 

Muitas comunidades levam o nome de seu fundador. Por exemplo, os Franciscanos – não se pode falar dos Franciscanos sem falar de Francisco. Quanto mais o tempo passa, novas perguntas surgem para os Franciscanos responderem. São perguntas que Francisco não conheceu. Por exemplo, o problema das drogas. Como eles fazem para responder a essa pergunta com esse carisma? Tem que se inserir na pessoa de Francisco, em seu espírito, para poder dar, com sua própria voz hoje, respostas aos problemas e continuar, por assim dizer, o carisma de Francisco.

 

Quanto mais distância há entre a vida e a morte do Fundador, mais importante é recorrer a seu espírito, penetrar seu espírito, para poder responder situações concretas. Isso não é algo específico de Schoenstatt. Isso nos ensina a história da Igreja e é algo próprio de cada comunidade religiosa, cada movimento eclesial. Quando uma comunidade se reúne para seus capítulos, seus congressos, está justamente voltando à fonte par iluminar o momento presente a partir do carisma recebido.

 

 

 

Quando uma pessoa assume o carisma de seu fundador, isso não significa que essa pessoa nega sua própria missão pessoal?

 

Eis uma linda pergunta! O carisma do fundador, por natureza, traz a amplitude necessária para que cada um, com sua própria missão, com sua própria identidade, enriqueça esse carisma. O carisma do fundador ou da fundadora é um bem, uma graça. É um modo de viver a relação com Deus, que foi própria dele, e que nos foi transmitida em forma de missão. Mas, eu contribuo com esse carisma, o atualizo, o vivo com minha própria identidade.

 

Obviamente que quando tratamos de penetrar no espírito do Fundador, há sempre o perigo de absorver-se. Sobretudo quando se trata de uma pessoa que busca esconder a sua insegurança ou sua debilidade. Isso é obviamente um perigo. Agora, não se trata justamente disso, mas de uma integração vital.

 

Se eu sinto que tenho vocação para esta Família, neste caso à Família de Schoenstatt, eu participo, com minha riqueza, com minha missão pessoal, com minha identidade, dentro do carisma do Fundador.

 

Se os seguidores devem desenvolver criadoramente o pensar do Fundador em circunstâncias que ele não viveu, não se corre o risco de desenvolvê-lo de acordo com próprio ponto de vista e não sobre o ponto de vista do Fundador?

 

Hoje temos perguntas concretas que o Pe. Kentenich não responde diretamente, porque não pode responder, porque não vive nesta época atual. Por exemplo, Schoenstatt na Ásia. Pe. Kentenich não podia responder essa pergunta, ele não viveu esse contexto. Agora, é possível ou não é possível levar o carisma à Índia, por exemplo? Claro que é possível. Aí se trata justamente de tomar o espírito do Fundador, e eu, que vivo neste contexto, neste lugar, devo levá-lo ali. Esse é um desafio fascinante, por assim dizer, que Deus põe em nossas mãos. Todo fundador depende de seus filhos espirituais. Ele, por assim dizer, tem as mãos atadas, porque somos nós que os fazemos presentes, que levamos seu carisma partindo da convicção de que esse carisma não é uma questão pessoal apenas, mas é um presente de Deus para a Igreja, um presente do qual eu participo e essa é minha vocação. O fundador necessita de mim – eu sou seus braços, suas mãos, sua voz hoje – não para levá-lo adiante, mas para levar o presente que Deus oferece ao mundo por meio dele.

 

Quando alguém se empenha para penetrar no espírito do Fundador, na sua forma de ser, isso não pode ter como consequência um saudosismo, um tradicionalismo, sem encarar a realidade como de fato ela é?

 

Bom, essa crítica tem algo de justificável. É um perigo que realmente existe. Sempre há um desafio em viver e se aproximar cada vez mais do espírito do Fundador, com isso, não ficar parado no passado, mas, projetar-se ao futuro. É preciso justamente uma nova fecundidade, tanto da pessoa que se vincula com ele, como também do movimento, da associação que tem que responder aos desafios do presente. Por isso, se fala de um vínculo com o Fundador, que não se trata de repetir cegamente o que ele disse, mas assimilá-lo e conhecê-lo, conhecer sua riqueza, para dar forma ao futuro.

 

Você me faz uma pergunta muito linda que tem a ver com a verdadeira fidelidade. A fidelidade, uma palavra às vezes tão desgastada, que se toma no sentido de “ser fiel fazendo sempre o mesmo”. Não (isso não é fidelidade). Ser fiel é manter vivo o espírito na realidade de hoje. Esse é o porquê do título da minha tese. Segundo a Carta aos Gálatas, a fidelidade é fruto do Espírito Santo. Por quê? Porque o Espírito Santo faz com que o amor esteja sempre vivo. É esse sentido de verdadeira fidelidade. É sempre uma fidelidade que olha para o futuro, que, poderíamos dizer, é dinâmica, criadora. Agora, justamente entre o perigo de ficar estaticamente só no passado e o perigo de olhar só para o futuro, e no fundo eu “inventar” um movimento, um carisma, uma espiritualidade, está o ponto médio: eu me arraigo no espírito do fundador e, desse espírito e nas circunstâncias nas quais Deus hoje me coloca, trato de representar, de viver, de dar uma resposta a atualidade por meio desse carisma.

 

 

 

Em Schoenstatt costuma-se usar muito as palavras do Fundador. Vemos muitas vezes citações de suas palavras e, às vezes, dizemos: “parece que ele disse isso ontem ou hoje”. De fato, é importante sempre repetir de novo as palavras do Fundador?

 

Em primeiro lugar, creio que se partimos de “repetir palavras”, estamos em uma base equivocada, porque não se trata de repetir, e sim de viver, isso é o fundamental em Schoenstatt e em outros movimentos. Em Schoenstatt há um marco em nossa missão, nesse sentido, que é a pedagogia dos vínculos e a Aliança de Amor. É preciso penetrar no espírito do Fundador e um dos meios privilegiados – não é o único – é por meio da palavra. Ou seja, se eu não conheço o que ele disse, o que ele pensou, o que ele escreveu, dificilmente posso penetrar em seu espírito. Se eu considero que a comunidade é dele, então é normal que eu estude, que fale e converse sobre a palavra do Fundador. Agora, pedagogicamente em outro âmbito, não é necessário repetir o que diz o Pe. Kentenich, desde que eu, como portador desse carisma, o conheça. Não tem tanto que ver com repetir, mas com conhecer e amar, isso é fundamental. Para nós, a palavra do Fundador, assim como para cada pessoa que participa de um carisma, é uma palavra a se conhecer e se aprofundar, a penetrar cada vez mais.

 

Como interpretar a palavra do Fundador, aplicando às situações atuais, sem descontextualizá-la da realidade na qual ele a pronunciou?

 

Com isso entramos em um tema complexo, que inclui olhar para a Sagrada Escritura. O processo de descontextualizar é sempre posterior ao processo de contextualizar, ou seja, o texto no contexto. Para eu poder entender, tanto a Sagrada Escritura como qualquer escrito, tenho que conhecer o contexto no qual foi dito. Por exemplo, se quero ler A Divina Comédia, tenho que conhecer o contexto histórico e religioso no qual Dante viveu, também entender que há palavras que ele utilizou e que hoje em dia não se usa mais. Por isso, é importante conhecer o contexto para compreender o espírito. Depois, como segundo ponto, é preciso contextualizá-lo, dizendo qual é o núcleo. Por fim, esse núcleo eu o transmito e o enxerto na realidade de hoje. Ou seja, trato de dar uma resposta e comparar o contexto atual com o núcleo daquilo que disse o fundador. Então, analisar o texto e o contexto é a base para depois poder, justamente, aplicar esse texto, aplicar esse espírito ao novo contexto.

 

Quando você fala que é necessário refletir sobre a palavra do Fundador, na realidade da qual ele falou, e quando diz que é preciso penetrar no espírito dele, em outras palavras está dizendo que é necessário um vínculo com o Fundador. Qual o meio para se ter um vínculo pessoal ao Fundador? O Pe. Kentenich já faleceu há tantos anos, como uma pessoa pode ter um vínculo pessoal com alguém que já não está presente no momento fisicamente?

 

Com a palavra ‘vínculo’, estamos nos referindo a uma relação pessoal com alguém que nos interpela como um todo. Isso é importante, justamente como marco de uma missão, marco de um carisma, o marco de minha vocação para Schoenstatt. Segundo o grau de compromisso e de entrega que minha vocação supõe, é também correspondente o grau de vínculos. Agora, como se cultiva a vinculação? Em primeiro lugar, a vinculação ao Fundador é uma graça, uma graça que está unida a minha vocação.

 

Há uma linha intelectual, do conhecimento. Mas, na verdade, para poder compreender o espírito de uma pessoa, poder levá-lo pars as novas circunstâncias, o fundamental não é só o intelectual, mas, em definitivo, é amá-lo. É algo que vai além de um compromisso de minha pessoa com seu carisma. Isso é o que define justamente a vocação, neste caso a vocação para Schoenstatt.

 

Para a pergunta se é possível um vínculo depois da morte ou não, eu responderia também que depende da vocação. Se eu tenho vocação para Schoenstatt, se sei que Deus me chama para ser portador desse carisma, posso dizer, ao mesmo tempo, que Deus preparou minha alma, preparou minha missão pessoal, minha identidade, para que eu possa chegar a me integrar, para que eu possa chegar a dizer: ‘isso é meu’. Porque, senão não é possível a fecundidade. Então, nesse sentido, se pode dizer: Deus me preparou para esse carisma, eu participo nesse carisma pelo Fundador. Se poderia dizer que, então, há um “parentesco espiritual” com ele. É o nosso sangue espiritual, uma sintonia interior que parte justamente do fundamento de que ele e eu temos, em definitivo, a mesma missão. Cada um com seus dons, mas, participamos e nos entregando pelo mesmo (carisma). Isso que disse até agora vale para cada fundador ou fundadora, para cada vocação nascida de um carisma pessoal que há dentro da Igreja.

 

No caso de Schoenstatt, isso é ainda mais marcante. Pois, uma parte essencial de nossa missão é viver os vínculos. Os vínculos não são, em primeiro lugar ou somente, um contato exterior ou uma colaboração. Mas, se trata de saber que um é para o outro um complemento e um caminho para Deus. Isso é parte da nossa missão. É o que chamamos de organismo de vinculações, Aliança de Amor ou espírito de Família, é o Schoenstatt que queremos viver, onde se supõe que cada um tem sua originalidade.

 

Tem que haver uma capacidade de universalizar os vínculos entre si e com o primeiro receptor do carisma, que nesse caso é o Fundador, ou seja, o Pe. Kentenich. A tudo isso, os movimentos eclesiais – que são uma realidade predominantemente do século passado e tiveram seu auge a partir do Concílio Vaticano II – talvez, justamente em base da experiência que nos presenteia a história da Igreja, tenham uma vinculação ao Fundador muito mais marcante, ou seja, é justamente uma característica.

 

O que me ocorreu é que um canônico já falecido, bastante conhecido, via justamente essa característica que se pode observar nos movimentos. Isso não como uma forma de marginalizar-se, de querer “ser exclusivo”, ou de dizer “Eu sou diferente dos demais”. Mas, como um modo de aprofundar o próprio, também a raiz, como já disse, da experiência na história da Igreja, onde a comunidade muitas vezes não teve muito presente qual era o carisma do fundador. Agora, sempre há o perigo do exclusivismo, de querer ser exclusivo, de parcializar-se, não é esse o sentido, mas o contrário.

 

 

 

Há duas correntes de pensamento em relação ao período pós-fundação de Schoenstatt. Uma corrente diz que o vínculo dessa geração atual – do centenário da Aliança – ao Fundador é muito importante, porque é ela que transmitirá o Fundador para a geração seguinte. Porém, há outra corrente também, que assegura que a geração seguinte ao Fundador não deve se preocupar tanto com o vínculo a ele, mas muito mais em atualizar o seu carisma. Qual sua opinião sobre isso?

 

Penso que é preciso esclarecer que se trata de uma declaração do ponto de vista teológico, da Teologia dos Fundadores. A cada 25 anos, aproximadamente, uma nova geração surge. Nós já vamos chegar aos 50 anos desde a morte do Pe. Kentenich. Então, já são duas gerações, desde que ele faleceu. A geração que está hoje ativa, em Schoenstatt, praticamente já não o conheceu. Há uma coisa que é fundamental: cada geração, com base na proximidade que tem dele, tem algo diferente. Mas, o vínculo ao Fundador recorre a todas as gerações. Porque o vínculo ao Fundador, por assim dizer, é parte de minha vocação para Schoenstatt. É uma parte fundamental de minha vocação à Schoenstatt, no sentido de que é um caminho que me permite conhecer e viver o espírito que tenho que transmitir e que levar. Nesse sentido, independente da geração, porque em cada geração os desafios são diferentes – o desafio da primeira geração fundadora, é assegurar melhor aquilo que é vivido, e das gerações que seguem é algo mais projetado ao futuro – se dão os mesmos elementos.

 

Você trabalha na secretaria do Vaticano, no setor responsável pela canonização dos santos. Em sua opinião, por que é importante canonizar o nosso Fundador?

 

Canonizar o nosso Pai e Fundador não é importante em primeiro lugar algo para nós. Para nós ele já é um santo. É importante para a Igreja. Ou seja, cada santo tem uma missão, um dom, sobretudo quando são fundadores, quando presenteiam uma família espiritual. Nós seríamos egoístas se disséssemos: “Bom, para mim já é o suficiente que o Pe. Kentenich é santo. Para que canonizá-lo?”

 

Obviamente que ele não é canonizado para mim – para mim já é um santo – mas, ele é canonizado para a Igreja. Cada santo é um presente e um enriquecimento para a Igreja. Neste sentido, a grande pergunta não é se é importante para nós ou não, se é santo para nós ou não. A pergunta é: Eu creio que nosso Fundador tem algo para oferecer à Igreja? E sem tem, é importante esse reconhecimento da parte da Igreja. Não se trata de um privilégio de ser um santo, mas da abertura da Igreja para o carisma. Para chegar a santidade, há um reconhecimento implícito do carisma dos fundadores, do seu presente para a Igreja e por amor à Igreja.

 

Em sua opinião, qual a maior dádiva que Deus oferece à Igreja pela pessoa e Obra do Pe. Kentenich?

 

Creio que o Pai tem uma linha mariano-pedagógica, que nós chamamos Aliança de Amor. Justamente à luz desse jubileu da Misericórdia, do magistério de Francisco – que apostou tanto em revelar essa dimensão de um Deus que é Pai e que está nos esperando – eu creio que é uma chance e um desafio, quase que uma obrigação de nossa parte, apresentar o nosso Fundador.

 

Por um lado, temos todo o aspecto mariano-pedagógico, o aspecto de um amor à Maria, que tem uma dimensão que não é somente espiritual e religiosa, mas que é pedagógica. Maria me educa e educa a Igreja, essa Maria Mãe que forma os filhos. Por outro lado, temos o magistério de Francisco e o presente que ele nos dá com o jubileu da Misericórdia, em seu reforço pastoral, em sua missão teológica de apresentar a figura de Deus e da misericórdia como natural, como um aspecto quase maternal, que procura seus filhos. Eu diria que nós, nesse contexto, desfrutamos do que Deus nos presenteou em nosso Fundador e em sua missão de ser transparente do Pai, o que chamamos de organismo de vinculações, de refletir a misericórdia de Deus, que foi um elemento básico de seu carisma.

 

 

Essa entrevista foi publicada em 2018.

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